quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O fantasma da Confraria

Era o meu grande dia, e que bonito dia estava meio avermelhado tudo rubro e alaranjado incandescente e redundantemente quente. Vesti-me rápido e ouvi um pássaro cantar, era o Tobias, o meu canário que partilhava a gaiola com o Sarkozy e o Groucho. Tinha havido uma Bruni, mas morreu de susto quando viu o Groucho a papar o Sarkozy. Coisas de pássaros com almas dos mesmos. Comi um pão com chouriço industrial e senti o travo da máquina. Estou a engolir com ternura o travo do porco e da máquina feitos pasta metida em tripa inteiriça que se quebra com o metal da faca e se enfia num pão branco e insuflado, filho préstimo da máquina e da colheita. Pão falso com porco feito por mãos metálicas de robot. Desliguei a televisão ajeitei a gravata e preparei-me para sair para a rua. A Companhia estava contente, eu Tristão Chalaça o melhor vendedor de enlatados à base de carne do ano e do país. E para culminar a Confraria das Carnes em Lata preparava-se para me entronizar. Era a recompensa pelo meu árduo labor. Visto-me relativamente mal pois aprendi que no sólido mundo das carnes de conserva uma gravata enodoada pode condizer melhor com o lastro empedernido das unhas dum retalhista bom pagador, mas até isso está a passar de moda. Hoje era um dia especial, por isso pelo sol e pela glória tirei o meu falso Armani do esquecimento e transformei-me num homem de gravata. Tirei do trajecto de metro um aroma a gruta e um nervosismo filho da puta. Quando cheguei ao Hotel Jacinto várias individualidades da Companhia já faziam lustre com verdadeiros fatos e muito riso com as mulheres que lhes ofereciam canapés. Encontrei a Domingas perto da mesa das cartas frias no seu corpo redondo e gelatinoso embrulhado numa túnica meia transparente. A Domingas era a psicóloga da empresa e tinha-se saído bem: os níveis de confiança eram altos e de curioso só o suicídio do Dumdum Aniseto e a gravidez da Zita, a rapariga das fotocópias, com Barnabé, o rapaz das fotocópias. Como sempre a conversa versou sobre o Aniseto; tinha falhado os limites não tinha créditos acumulados de vendas e por isso resolveu queimar os miolos com um revólver em frente aos colegas do departamento sanitário. Eu gostava da Domingas, mas no trabalho trocávamos cumprimentos casuais e pouco mais; de resto sempre que nos encontrávamos falávamos do suicida. A conversa terminava mais ao menos quando ela dizia agora não há nada a fazer e eu dizia pois não. Havia vários animadores vestido de presunto e uma versão de Vivaldi com bateria que fazia o chão tremer. Comecei a suar e agarrei dum tabuleiro um refrigerante com gelo. Vi o meu chefe de vendas ao longe já bêbado a tentar morder o disfarce dum animador e a seguir empurrá-lo e desatar a bater-lhe ao murro e pontapé, depois foi agarrado e levado para uma sala mais ao fundo. Por momentos os homens dos fatos caros no centro da sala pareceram parar de rir e ficaram a olhar enquanto os seguranças do hotel a mulher e os amigos o levavam à força do salão. Conversei com dois ou três conhecidos sobre banalidades e coisas do negócio. Dirigi-me à casa de banho. Passado um bocado tendo tirado um toalhete para me limpar da água senti algo como um gemido, um grito de osso murmurado e rouco. E lá estava ele desalinhado descomposto cheio de vomitado olhos injectados de raiva e vergonha enjaulado no rectângulo das paredes da sanita como um tigre prestes a borrar-se depois duma dose de carne estragada. Tinha uma pequena automática numa mão e papel higiénico molhado noutra. Chalaça, disse ele, vou-me matar. Não, não faças isso tem calma vamos conversar. Isso, vamos conversar, concordou ele. Levantou-se pisando o visgo do vómito e dos acumulados da festa. Desequilibrou-se e com a arma destravada por estupidez baleou-me no peito e eu morri. Foi chato mas deu um novo rumo á minha vida. A Confraria entronizou-me a título póstumo e a Companhia assegurou que a minha mãe viúva fosse abastecida de vitualhas enquanto vivesse. No meu túmulo pode-se ler em letras bem visíveis; Tristão Chalaça uma vida de trabalho ao serviço das conservas.

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